De tropicalista inspirado, Caetano chega aos 70 abraçando contradições que um dia denunciou
07/08/2012 07:55Nascido há exatos 70 anos, Caetano Veloso está presente no imaginário nacional, ininterruptamente, desde 1967, quando cantou em duo com Gal Costa a bossinha tímida "Coração Vagabundo". Ao longo desses 45 anos, fixou uma imagem complexa, ambígua, não raro contraditória - desperta paixões e ódios em proporções equivalentes -, e esse caráter sempre ambivalente é a própria essência de seu marketing pessoal. Com o perdão do clichê, há muitos, inúmeros Caetanos: o grande artista, o homem que ama as polêmicas, o lobo em pele de cordeiro, o cordeiro em pele de lobo, o esquerdireirista, o falastrão que tempera genialidade musical com falatório político em ritmo de besteirol etc. etc. etc.
Na data redonda dos 70, cabe a pergunta fatídica: qual, entre os 1001 Caetanos, é o Caetano que importa, faz a diferença, impulsiona a história de seu (nosso) país para frente, será lembrado e celebrado com júbilo daqui a 50, 100, 200 anos? O artista tropicalista inquestionavelmente inspirado é a resposta óbvia e suficiente. Tentemos fugir do óbvio.
Desde a eclosão tropicalista de "Alegria, Alegria" (1967) e "Divino, Maravilhoso" (1968), a grande contribuição de Caetano à cultura brasileira tem sido a de agir bravamente em prol da distensão de costumes num país (inicialmente) sob ditadura. Entre muitos participantes engajados ou circunstanciais do movimento, o triunvirato formado por Caetano, Gal e Gilberto Gil virou nosso imaginário de pontacabeça no campo fechado e opressivo do comportamento.
No advento da Tropicália, Gil, negro vestido em batas africanas, e Gal, de cabeleira black power, simbolizaram o levante racial. Gal e Caetano, de gestual e vestuário femininos, glamurosos, sopraram ventos feministas, sob o refrão romântico "Baby, baby, I love you". Caetano, Gal e Gil, cada um à sua maneira, borraram distinções raciais, de gênero e de identidade sexual. Caetano, mais que qualquer outro tropicalista, deixava no ar o gesto gay, a sexualidade múltipla, o Stonewall à baiana, o direito masculino à superação das prisões corporais e mentais da masculinidade.
Em termos musicais, Caetano talvez nunca tenha sido tão genial quanto Gil ou Gal. Mas sempre foi o mais valente dos três, o mais disposto a afrontar e enfrentar, a peitar o embate, a ir como cobaia para a frente de batalha. É perturbador constatar que sob muitos aspectos tenha se desenvolvido num conservador agressivo, conforme ficava adulto, maduro e velho, como agora ele mesmo gosta de se definir. Mas isso não importa. Ainda que aqui e ali possa hoje atuar como preconceituoso ortodoxo, sua grandeza reside no exteminador de preconceitos que foi quando interpretou, entre muitos personagens, o tropicalista, o doce bárbaro, o dançarino odara, o muso new wave, o porta-bandeira dos eclipses ocultos nos comportamentos de todos nós que somos seus admiradores.
Na virada de 1968 para 1969, quando a tempestade tropicalista mudava para sempre os rumos da quase sempre contida e conservadora música "popular" brasileira, a ditadura militar selecionou Caetano e Gil, justamente eles dois, para o exílio político. Até hoje não compreendemos exatamente os porquês dessa escolha dos militares (por que Caetano e Gil?, por que não Chico Buarque?). Mas quanto mais os anos passam mais parece evidente que os cabelos desgrenhados, a postura hippie, os gritos primais e a carranca africana e as bichices de Caetano e Gil incomodaram a ditadura como nunca incomodaram os terninhos de Chico e Edu Lobo ou as golas engomadas de Elis Regina e Nara Leão.
Como qualquer figura contraditória por natureza, Caetano acabou por encarnar várias das contradições e dualidades que principiou denunciando. Após combater a caretice de agressividade enrustida da MPB de festival, ele se uniu a Gil, Gal, Chico, Tom Zé, Elis, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, (por que não?) Roberto Carlos e inúmeros outros na composição de uma nova elite, uma elite MPB. Mesmo em silêncio, tornou-se feroz na defesa corporativa dos seus, em inúmeras ocasiões.
No cenário difuso e confuso produzido a partir do pacto silencioso entre (ex-)inimigos (tropicalistas de um lado, sambistas/emepebistas de outro), Caetano soube guardar-se como retrato vivo e porta-voz de uma Tropicália supostamente límpida e cristalina: "Beleza Pura", "Não me Amarra Dinheiro, Não". Escondeu, sob o colorido capuz tropicalista, sua crônica indecisão entre o modo Gil e o modo Chico de encarar música, cultura, política, cidadania.
Mais uma vez, a história o atropelou. O modo Gil de encarar o mundo apossou-se do Ministério da Cultura, e Caetano conservou-se em cima do muro. Com Ana de Hollanda, o modo Buarque - tradição, sobrenome, propriedade - ocupou o MinC, e Caetano conserva-se em cima do muro. A hesitação é face feia da ambivalência, o grande valor positivo que Caetano introduziu indelevelmente na tal MPB.
Até aí ele conta com enorme adesão, suficiente para mantê-lo na dianteira (ao lado de Chico) entre os mais influentes e barulhentos artistas/agentes políticos da geração deles. A ambiguidade de Caetano é o que o aproxima de nós, tanto de quem o ama quanto de quem o odeia. E ele, esse cara, assimilou na surdina a máxima cantada por Elis em 1979, de que "o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões". Rei-leão mais sutil que o outro "rei" da canção nacional (Roberto Carlos), mantém sob seu poder hipnótico, igualmente, os amantes e os odiantes. Nesse caso, para os bens e para os males, somos nós, mais que nosso espelho-narciso-exemplo Caetano, os verdadeiros ambíguos, indecisos, ambivalentes, contraditórios.
* Pedro Alexandre Sanches, 44 anos, é jornalista, crítico musical e autor dos livros "Tropicalismo - Decadência bonita do samba" (2000) e "Como dois e dois são cinco" (2004).
FONTE: UOL MÚSICA (CLIQUE AQUI para redirecionar)
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